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Regência de ossos é lançado na I Odisséia da literatura fantástica

O escritor Marcelo Paschoalin lançou na I Odisséia da literatura fantástica (dias 27 e 28 de abril) seu novo livro ´´Regência de ossos`` e relançou ´´A última dama do fogo`` num evento que contou com cerca de 90 escritores de 17 editoras e contou com  mais de 600 pessoas visitando o evento.
Rebecca Guay? É você?



A Odisséia da literatura fantástica, que terá uma edição em São Paulo em junho, é um exemplo de como a literatura fantástica está ganhando força no cenário nacional! E para comemorar isso, disponibilizamos aqui o primeiro capítulo de ´´A última dama do fogo``!


Prelúdio
— MANTENHAM O CURSO!
Os brados do capitão mal podiam ser ouvidos,
pois a fúria da tempestade, orquestrando
uma melodia de ventos, relâmpagos e granizo,
não cessava. Todos a bordo sabiam que o galeão
havia se transformado em um brinquedo
nas mãos de um displicente infante, mas nenhum
membro da tripulação ousava sequer
pensar em se entregar à força das ondas. A
tempestade não duraria muito, pensavam, pois
já lutavam há mais de uma hora contra sua fúria.
Mas pela mente do contramestre as
lembranças de um porto seguro se dissipavam
cada vez mais.?Sob o convés, na cabine reservada aos passageiros,
duas pessoas se abraçavam, sem
saber o que o destino havia lhes reservado. O
mais velho, com cabelos brancos como o granizo
que batia contra o navio e olhos azuis
como o mar revolto, estava trajando uma túnica
púrpura, com um capuz cobrindo sua
cabeça.

Sabe que esta é minha última jornada e
que não nutro esperanças por um bom final,
— tentava, apesar dos trovões, acalmar a jovem
a ele abraçada. — mas sei o que a aguarda.
Tenho certeza de que honrará a oportunidade
que o destino lhe dá para que sua vida seja
plena em virtude.
As lágrimas da jovem, que não aparentava
possuir mais do que vinte anos, corriam profusamente
por sua face, manchando o vestido
escarlate que estava usando. Seus cabelos castanhos
estavam revoltos, sinal de que acordara?às pressas quando a tempestade se anunciou, e
sua pele alva e macia era apenas um arauto de
sua beleza singular, que poderia ser resumida
na pureza de seus olhos de esmeralda.
— Eu não desejo isso, Zagar! — ela soluçava.
— Meu lugar é aqui! Não pode o destino
ser tão cruel a ponto de me separar daquele
que cuidou de mim e tudo me ensinou...
Zagar a abraçou mais carinhosamente, de-xando
que suas palavras brotassem como
sussurros nos ouvidos da jovem:
— Sim... Mas isso se deve a seu pai, que me
fez aceitar o papel de ser seu tutor quando sua
mãe voltou aos braços do Eterno. Quisera eu
ter sido abençoado com uma esposa... E filhos...
Os soluços cessaram, mas o pranto continuava
e a jovem se agarrava cada vez mais à
túnica de Zagar.?— Mas o que farei quando chegar a Vlyn,
se conseguir vencer a tempestade? E se a maldição
da morte sempre viva ainda persistir?
— Não, não há nada que possa fazê-la temer.
Uma nova magia está nascendo na ilha de
Vlyn e de lá poderá seguir para o Grande Continente,
se assim os deuses desejarem. —
passou o dedo pela face alva da jovem, secando
uma das lágrimas. — Sabe que pode usar
essa magia! Aprenda e utilize bem seus conhe-cimentos.

Mas...

E quando chegar o momento, talvez
seus atos tenham sido os precursores daqueles
que irão trazer a Era Dourada novamente.
Engolindo o choro, abraçou-o ainda mais
forte, mas o balanço do navio logo os lançou
ao chão. Foi então que, levantando-se com
dificuldade, ela viu que a água começava a
passar por baixo da porta de sua cabine...?E, de súbito, a porta foi escancarada. Con-tendo
um grito, porém, percebeu que não era
uma massa d ’água que entrava,mas sim o c a-pitão
do navio, totalmente encharcado.
Escorando-se num dos móveis presos ao chão
da cabine, ele puxou pelas mãos a jovem.
— Não há muito tempo! — estendeu a ou-tra
mão para Zagar, sua voz demandando
urgência. — O casco foi comprometido quan-do
nos chocamos com algo... Tenho um
escaler já preparado, mas não podemos perder
tempo!
A jovem olhou com desespero para Zagar:
— Meus pertences, minhas...
— Não há tempo! – bradou o capitão. —
Precisamos subir agora!
E novamente foram lançados ao chão pela
força das ondas. Desvencilhando-se de quem a
segurava, a jovem conseguiu alcançar uma ga-veta,
de onde rapidamente retirou uma?gargantilha de esmeraldas e a colocou no pes-coço.
Pondo-se em pé novamente, o capitão
falou com zombaria:
— Meus homens estão lutando por suas
vidas e tu apenas te preocupas com riquezas...
— Jamais repitas isso, capitão, — Zagar o
interrompeu, colocando o indicador direito
diante dos olhos dele — ou serão tuas últimas
palavras. Não posso impedi-la de levar consi-go
o único elo físico que Deora tem com sua
mãe. Mostra o caminho.
A jovem Deora segurou nas mãos de Zagar
e, em meio aos trancos e balanços do galeão,
conseguiram atingir o convés. Lá, contudo, a
situação se mostrava infinitamente pior do que
se podia imaginar: alguns tentavam, a todo o
custo, reparar a vela do mastro principal, que
aparentava não poder suportar por muito mais
tempo o vigor dos ventos, outros corriam com
baldes jogando a água para fora.?Enquanto passavam pelos homens que lu-tavam
por suas vidas, o capitão se deixava
tomar pela angústia. Tudo o que temia estava
tomando força, mas pouco podia fazer para
salvar sua tripulação. Restava-lhe, somente,
permitir que os dois que conduzia pudessem
escapar.

Nau pronta, capitão. — o contramestre
acenou de longe, sem muita reverência, segu-rando
as amarras do escaler.
Sem palavra, o capitão conferiu se as provi-sões
estavam na pequena nau, já estendendo a
mão para Deora, que prontamente se colocou
no centro. Zagar, no entanto, não se moveu.
— Meu senhor, não posso permitir que fi-ques
conosco. — a sinceridade estava nos
olhos do capitão. — O galeão não é mais se-guro.
Mas, como se a tempestade respeitasse a
voz de Zagar, silenciou por um momento:?— Há sete anos, capitão, — disse, ainda
segurando nas mãos de Deora. — foi em teu
navio que deixamos o Grande Continente,
sendo um dos primeiros a seguir o caminho
do Êxodo. Sabes muito bem que a magia é o
que dá força ao nosso povo, e sabes também
que não podíamos lá permanecer. Enorme foi
tua bondade ao permitir que Deora conosco
embarcasse, mesmo nela não fluindo o sangue
de nossas mães, e isso não pode ser esquecido.
É por isso que, quando decidi retornar, sendo
o primeiro a acreditar que o Êxodo teria um
fim breve, escolhi a ti como aquele a nos guiar.
Deora seguirá para Vlyn, com as bênçãos da
amada deusa Andora, regente de toda a natu-reza,
e irá buscar a nova magia que pode fazer
com que, um dia, todos retornemos. Eu, no
entanto, contigo permanecerei, pois não posso
te deixar sem que o remorso por ti e por teus
homens me consuma pelo resto dos dias.?— Zagar, não!
Os gritos de Deora, em franco desespero
quando Zagar soltou sua mão, foram abafados
por um trovão ensurdecedor, prenúncio de
uma nova investida da tempestade. Com um
aceno, o capitão deu permissão ao contrames-tre
para que as amarras fossem soltas e o
escaler se afastou rapidamente. Os brados de
Deora não mais puderam ser ouvidos e, pouco
depois, as altas ondas impediram que Zagar
fosse capaz de observar a jovem que esteve
sob seus cuidados por tantos anos.
A pequena embarcação não havia sido con-cebida
para sobreviver em meios
tempestuosos, mas precisava, ao menos desta
vez, ser capaz de atravessar o temporal e atin-gir
águas mais calmas. Porém, a fúria das
ondas parecia não ter fim e Deora, finalmente
deixando que sua razão falasse mais alto, a-marrou-
se ao escaler para que, se fosse jogada?ao mar, pudesse alcançá-lo sem muitos pro-blemas.
Com um remo nas mãos, em vão
tentava manobrar a pequena nau, que havia se
tornado nada além de uma marionete sob con-trole
das ondas. Por ser noite, somente o
clarão dos relâmpagos podiam guiá-la, o que
não a impediu de lutar. Todavia, suas forças
estavam se esvaindo, e Deora percebeu o quão
difícil era remar contra todas as correntezas de
Andora.
Então, sem aviso, as ondas se acalmaram
apesar dos ventos rugirem como nunca antes
haviam feito. Deora suspirou, aliviada, e dei-xou
que o escaler seguisse por uma leve
corrente marinha por alguns instantes. Mas,
quando os raios novamente iluminaram os
céus, o pavor tomou conta da jovem que,
murmurando todas as preces que conhecia,
largou o remo e se segurou ainda mais forte-mente
à pequena embarcação...?A razão de seu pavor não era infundada,
pois aquela calmaria era apenas o anúncio da
formação da maior das ondas, tão alta quanto
um dragão, tão extensa quanto as asas de um
pássaro roca. E, com um rugido mais podero-so
que todos os trovões juntos, a onda
quebrou, tragando o escaler e Deora para as
profundezas do mar.?Um
AS GAI VOTAS J Á SI NGRAVAM OS CÉUS
em uma constante revoada quando Brion re-tornou
de sua pescaria, um tanto insatisfeito
com a pequena quantidade de peixes que havia
em sua rede. Sabia, no entanto, que era mais
do que ele e sua esposa precisariam nos pró-ximos
três dias, fazendo-o se recriminar por
desejar dos mares mais do que seria justo para
si. Remando pelas águas que banhavam a praia
de Mitarna, vazia como de costume àquela ho-ra,
o pescador sorriu, admirando a rotina de
seus dias. Porém, desta vez, havia algo mais,
suficiente para fazer com que Brion se sobres-saltasse.?— Ora, ora... — uma pequena embarcação
balançando ao ritmo das ondas, parcialmente
presa na areia da praia, era o que chamava sua
atenção. — Quem em sã consciência deixa um
barquinho mal ancorado assim?
Desembarcando rapidamente, o pescador
se aproximou da nau, enquanto notava o no-me
entalhado na proa, escrito com símbolos
estranhos, talvez grafado em um idioma des-conhecido.
Contudo, ao admirar a estrutura de
madeira, percebeu entalhes em toda a extensão
da quilha, como se o barco tivesse sido feito
por um artesão e não um carpinteiro. Mas sua
estupefação chegou ao ápice quando, ao ouvir
um gemido, percebeu que uma pessoa estava
deitada de bruços, amarrada por um dos bra-ços
à pequena embarcação.
— Por Val ’ys!— murmurou Brion. —
Roupas vermelhas! As ondas trouxeram uma
donzela da nobreza até aqui!?Como se houvesse percebido a presença do
pescador, a jovem tentou se mover, tossindo.
Só então viu o interior da pequena nau quase
todo tomado por água do mar, concluindo que
a jovem, vítima das fortes tempestades dos
últimos dias, tivesse tentado escapar... Mas não
haveria de ter vindo sozinha, pensava enquan-to
desatava o nó que a prendia, pois não seria
possível que tivessem deixado uma nobre sin-grar
os mares desacompanhada. Apoiando o
corpo da jovem no seu, ajudou-a a se sentar na
areia, pacientemente aguardando até que ela
expelisse toda a água de seus pulmões.
— Sei como é ruim engolir tanta água sal-gada,
— havia esperado até que ela se
recompusesse, falando em tom calmo, olhan-do
para os céus. — é por isso que navego
somente quando as marés estão tranquilas. Eu
deveria saber que os mares iriam trazer algo
diferente hoje, pois há muito não vejo as gai-?votas tão cedo aqui em Mitarna... Mas, antes
que me esqueça, meu nome é Brion...
A jovem, ainda com os olhos fixos na a-reia,
disse, como se sussurrasse:
— Eu sou... Deora.
Ainda por alguns instantes o pescador a-guardou,
como se esperasse o enfadonho
discurso de um nobre, dizendo seu nome, li-nhagem
e terras que possuía, mas a jovem
permaneceu em silêncio.
— Mas de onde vens, Deora, e onde estão
aqueles que contigo vieram? — ele a fitava,
seus olhos tomados por dúvidas sinceras. —
Se fostes vítima de um naufrágio, o que não é
algo comum nas águas de Vlyn, temos condi-ções
de tentar localizar teu navio... Ainda
assim, a última forte tempestade ocorreu três
dias atrás. Quem cuidou de ti durante todo
esse tempo??Mas Deora não disse palavra alguma. Seus
pensamentos estavam vazios — por mais que
tentasse se recordar de algo, o que passava por
sua mente eram apenas lembranças inertes,
fragmentos de memória, escassas peças do
quebra-cabeças que era sua vida.
— Eu... — apoiou a cabeça nas mãos, nu-ma
tentativa surda de se prender a algum
elemento que pudesse esclarecer-lhe algo so-bre
o que estava fazendo ali e de onde viera.
— Eu não lembro... De nada.
O sorriso deixou os lábios de Brion quando
o pescador tentou imaginar que eventos pode-riam
ter ocorrido recentemente na vida da
jovem para que esquecesse tudo, a não ser seu
nome. Mas, acreditando ser passageiro, o pes-cador
se ergueu lentamente e, com o sol às
suas costas, vislumbrou o ornamento de pe-dras
verdes no pescoço de Deora.?— Parece-me mesmo que tu pertenças à
nobreza, jovem. — voltou-se para a direção
do vento, esperando dele as respostas para as
perguntas. — Mas há coisas que riqueza algu-ma
pode nos dar.
Deora o fitou por alguns instantes, vendo
seus cabelos grisalhos brilhando ao sol. As fei-ções
do pescador denotavam a simplicidade
daqueles que vivem uma existência pacífica,
suas rugas, profundas, revelando as noites de
sono perdidas à espera de alimento. Entretan-to,
mais do que isso, eram os olhos de Brion,
tintos de um azul profundo, que inspiravam
confiança, pois Deora acreditava que já havia
fitado olhos como esses em algum lugar, há
algum tempo. E foi essa confiança que a fez
questionar, aceitando as respostas de Brion
como totalmente verdadeiras:
— Onde é aqui? Esta praia...? Essa Mitar-na?...?— Não te contarei apenas sobre Mitarna,
mas também sobre Vlyn. — o pescador sorriu,
abrindo os braços, sentindo-se como um nar-rador
de um conto antigo. — Esta ilha é
chamada de Vlyn, e é lar daqueles que ousa-ram
deixar o Grande Continente quando
navegaram para o sul. Minha vila, Mitarna, não
é mais que uma pequena comunidade pesquei-ra,
que sobrevive com as bênçãos dos deuses
que nos dão o suficiente quando jogamos nos-sas
redes ao mar. E, do nosso ancoradouro,
passam as naus que carregam ametistas com
destino ao Grande Continente e as especiarias,
gado e aço que recebemos em troca. Contudo,
é a vila de Jollern, a cerca de seis horas daqui,
que extrai as ametistas, pois foram eles que
abriram a mina na parte sudeste da ilha... —
olhou novamente para os céus, vendo a posi-ção
do sol no firmamento. — Mas aguarda um?pouco. Vou até minha casa pegar algum bom
alimento para ti, mas retornarei em breve.
Deora ouvia a tudo com atenção, como se
procurasse buscar um lampejo de memória
através das palavras de Brion, mas sua tentati-va
resultou infrutífera. Ainda assim, ela sorria.
— É uma bela ilha, com certeza, Brion. Eu
esperarei por ti e... Obrigada. Obrigada por
tudo o que fazes por mim.
O pescador pensou que jamais ouviria uma
nobre agradecer por algo e deixou que o bri-lho
nos seus olhos revelasse isso. Com uma
marcha rápida, prontamente seguiu na direção
de uma trilha que levava à pequena comunida-de
pesqueira.
Sentindo-se recuperada, Deora se pôs em
pé e olhou para seu reflexo na água acumulada
na pequena embarcação que a havia trazido até
Vlyn — seus cabelos estavam em desalinho e
seu vestido puído em alguns pontos, até mes-?mo deixando à mostra seu ombro esquerdo.
Mas era no adorno de esmeralda que trazia em
seu pescoço, brilhando como se dele pulsasse
vida, que seus olhos se fixaram.
Tocando sua gargantilha, por um instante,
vislumbrou um clarão em meio à escuridão de
sua memória — uma única cena, mas suficien-te
para que a jovem se sentisse não mais tão só:
era o momento em que alguém colocava no
pescoço de uma recém-nascida aquela joia.
Deora, de alguma maneira, soube que era a
garota, mas ainda não se recordava de mais
nada...

Certas lembranças devem ser deixadas para
trás, criança.
A voz parecia ter vindo de todos os lugares,
despertando Deora de seu sonho acordado.
Volvendo os olhos pela extensão da praia, não
encontrou ninguém. Era, com certeza, uma
voz feminina e suave, mas a jovem duvidava?que houvesse sido fruto do pequeno lampejo
de memória que tivera. Mas ao ver Brion, já
retornando com uma pequena cesta de vime,
acenando para ela, a jovem ousou pensar que
sua imaginação estava pregando-lhe peças.
— É bom ver que já te levantaste. — o
pescador deixou a cesta na areia e se sentou.
— Karina, minha esposa, ficou feliz em saber
que teríamos uma nobre hóspede em nossa
casa hoje... É claro, se aceitares nosso convite.
A jovem deixou todas as preocupações de
lado ao sentir o aroma de pão doce com frutas
e leite quente mesmo antes da cesta ser aberta.
A fome, algo que Deora enfrentara nos últi-mos
dias, agora se mostrava com todo o vigor,
e o pescador notou isso em sua face.
— Não mais fiques em pé, Deora. A comi-da
deve ser saboreada junto à areia e às ondas.
O pão acabou de sair do forno e o leite foi ti-rado
há pouco. — riu ao ver que ela ainda não?se mexera. — Vamos, o que aguardas? Um
convite formal?
A jovem se contagiou com o riso de Brion
e, sentando-se ao seu lado, compartilhou da
mesma alegria. Juntos, dividiram o pão e to-maram
da mesma jarra de leite. Nobre ou não,
pensava o pescador, Deora era uma pessoa de
excepcional simplicidade.
Quando o sol estava alto, os dois juntaram
as coisas e seguiram em direção à casa do pes-cador.
Pelo caminho, Brion mostrava tudo o
que havia, chamando cada planta e cada ani-mal
por seu nome particular, revelando saber
mais do que apenas contar histórias. E, não
muito depois, avistaram uma construção de
alvenaria, humilde em sua aparência, singela
em seus detalhes, um pouco afastada da vila,
pois somente ao longe outros rolos de fumaça
subiam aos ares...?Um fogo estava aceso em um amontoado
organizado de pedras, tal qual um fogão im-provisado,
e sobre ele peixes assavam. Ao lado,
uma jovem os recebia sorrindo.
Karina, esposa de Brion, tinha os cabelos,
da mesma tonalidade de seus olhos castanhos,
em tranças, brilhando sob o sol, enaltecendo a
beleza de sua fronte. Suas roupas, um misto de
vestido e avental, estavam um pouco impreg-nadas
com aroma de especiarias, mas Deora
parecia mais impressionada com os quinze ou
dezesseis anos que aparentava possuir.
— Meu marido! — tinha uma voz juvenil.
— Começava a me preocupar contigo, pois
mesmo trazendo tão nobre visita não te cos-tumas
demorar. Minha senhora, — ela fez
uma reverência. — és nossa hóspede e sou tua
serva durante tua estada. Algo que possa fazer
para te servir neste instante??Deora olhou para Brion com olhos indaga-dores,
mas o pescador apenas sorriu, sem nada
dizer. Um pouco encabulada, aproximou-se de
Karina, erguendo-a.
— Devo ser eu tua serva, minha anfitriã,
pois a ti e ao teu marido devo toda a retribui-ção
por vossos cuidados. Dessa forma, somos
iguais, e nenhuma de nós tem algo a dever.
Somos Deora e Karina, e não servas uma da
outra.
O sorriso de Brion cresceu enquanto as du-as
se abraçavam como se velhas amigas
fossem. E, enquanto conversavam, o pescador
cuidou de terminar a preparação do almoço
para que os três pudessem comer com as bên-çãos
dos deuses.
Após almoçarem, descansaram sob a som-bra
de uma figueira que Brion se orgulhava de
ter plantado. Riram. Conversaram sobre mui-tas
coisas. Deixaram que a noite caísse antes?de retornarem aos seus afazeres — Brion cui-dando
de seu barco, Karina de seu jantar.
Sozinha, brindada pela mais prateada das luas,
Deora deixou que o sereno e a calmaria fos-sem
suas únicas companhias.
— Esta noite venho buscá-la, criança.
E novamente Deora olhou ao redor, não
vendo ninguém. Era a mesma voz que ouvira
na praia, ecoando como se viesse de todos os
lugares. Lentamente, caminhou em direção à
casa, ainda volvendo o olhar para se certificar
de que ninguém mais estava lá.
— Disseste algo? — perguntou para a se-nhora
da casa. — Acho que ouvi uma voz me
chamar...

Não, — Karina se virou por um mo-mento,
ainda mexendo uma panela. — e
também nada ouvi, embora estivesse absorta
em minha culinária... — provou um pouco
com uma colher menor de madeira, sorrindo?em aprovação. — Teremos sopa de legumes.
Queres experimentar?
Deora balançou a cabeça em negativa e se
sentou junto ao pilão que guardava um dos
cantos do cômodo, ainda pensando na voz
que ouvira. Não muito depois, Brion retornou,
sua face tomada pela expressão de quem fez
bem o seu trabalho. Após o pescador pegar
uma cumbuca, ávido pela comida de Karina,
as duas também puderam comer, desta vez
sem conversarem muito devido ao cansaço.
Depois da frugal refeição noturna, a dona
da casa preparou uma cama de palha improvi-sada
para Deora, não tardando até que todos
estivessem deitados. Ainda observando o cur-so
da lua pelo céu, através da janela do
cômodo onde estava repousada, a jovem náu-fraga
se deixou dominar pelo sono.
E seu sonho fluiu com vagar, mesclando
memórias perdidas com fantasias desordena-?das, em um caótico ir e vir de imagens e sons
sem sentido e sem direção. Mas, emergindo
desse turbilhão difuso, um brilho tomou lugar,
ofuscando e inebriando, até que Deora viu
uma velha toda vestida de branco no centro de
uma encruzilhada, com quatro objetos aos
seus pés. Um a um, flutuando e girando em
torno da anciã, eles se transformavam: uma
espada, um cálice, uma moeda de prata e um
manto. A luz, então, começou a ofuscar a vi-são
novamente, impedindo que qualquer outra
coisa fosse vista e, quando não mais a jovem
pôde suportar o brilho, ela acordou.
A lua não estava mais no céu, embora a
noite ainda imperasse, como se não houvesse
lugar para o nascimento de um novo dia. Le-vantando-
se silenciosamente, a jovem viu seus
anfitriões alheios a tudo, com exceção do de-leite
de seus sonhos, dormindo abraçados com
seus corpos encaixados um no outro, enquan-?to caminhava em direção a uma bacia de cobre
onde havia água para lavar o rosto e as mãos.
Após cuidar um pouco de seus cabelos casta-nhos,
Deora saiu da casa para sentir a brisa da
madrugada. Tentava, sob a bênção da noite,
descobrir algum significado para seu estranho
sonho, mas a imagem da anciã que a fitava
longamente não saía de sua mente.
— Se quer as respostas, criança, siga para o sul.
Era a terceira vez que a voz se fazia ouvir.
Deora, porém, estava disposta a pôr um fim
nesse jogo de mistérios, deixando tudo para
trás, sem ao menos avisar seus anfitriões. Ca-minhando
por uma trilha que seguia para a
direção sul, evitando a vila de Mitarna, deixava
que a ousadia tomasse o lugar do receio, a
confiança dissipasse a dúvida e, com essas ar-mas
em seu coração, atravessava a distância
que a separava de seu destino.?Quando o sol despontou no horizonte, a
jovem avistou uma figura envolta em trajes
rubros que tremulavam ao vento como a cha-ma
crepita na fogueira. Encoberta pelo manto,
a uma mulher deixava somente suas mãos e
sua face à mostra, embora uma mecha de ca-belo
ruivo escapasse por baixo do capuz.
Ao se aproximar da encruzilhada, Deora
sentiu que havia passado por algum tipo de
teste, pois a mulher sorriu em aprovação. An-tes
que a jovem principiasse a falar, a mulher
ergueu seu braço direito, com a mão espalma-da
à mostra. Contudo, não foi o gesto que
calara Deora, mas a imagem de uma chama,
marcada a ferros em sua mão, tão nítida que
parecia ter sido feita recentemente.
— Sua curiosidade a impele adiante com
vigor, criança. Agradeço por ter vindo até aqui.
Era a mesma voz que por três vezes havia
falado à jovem. Porém, dessa vez, não ecoava,?partindo apenas daquela figura misteriosa que
parecia esconder segredos para os quais não
estava preparada... Ainda. A boca de Deora
novamente se abriu para falar algo, mas a mu-lher
a interrompeu com o olhar, retornando
em seguida o braço para sua posição natural:
— Sei que há muitas perguntas, criança.
Mas, por hora, basta saber que meu nome é
Mirhaanna. Sente-se pronta para caminhar?
Deora tinha a nítida impressão de que a
mulher já a conhecia ou, ao menos, estava des-tinada
a encontrá-la. Haveria de segui-la, mas
até onde? E por quê?
— Antes preciso avisar Brion e Karina. E-les
foram tão bons ao cuidar de mim que não
posso partir sem, ao menos, lhes dizer algo.
Chamar-me-ão de ingrata...
— Está morta, criança. — a voz de Mirha-anna
se tornara áspera como o fogo que?consome a madeira verde. — Ou, em breve,
estará.
Deora estacou, pálida, e olhou ao redor,
como se esperasse que dezenas de assassinos
surgissem do nada. Instintivamente buscou
algo no cinto, mas nada havia para usar como
proteção se fosse atacada...
Mirhaanna novamente sorriu e começou a
andar, como se a preocupação da jovem não a
afligisse. No entanto, ao perceber que Deora
continuava imóvel, voltou-se e disse:
— É por isso que não a chamarão de ingra-ta,
criança. Mas, por causa de meu atraso em
vir aqui, tenho de fazer com que o pescador e
sua mulher pensem que está morta, ou melhor,
que nunca tenha existido.
— Quer dizer que vinha ao meu encontro?
— a jovem se aproximou de Mirhaanna. —
Sabia que eu chegaria a Vlyn? Como?...
Sem se voltar, a mulher respondeu:?— Tudo ao seu tempo, criança. Quanto
mais nos demorarmos, mais longe estarão as
suas respostas.
Apressando o passo para se manter ao lado
de Mirhaanna, Deora arriscou uma última per-gunta:
— Mas para onde vamos?
Mirhaanna suspirou longamente. Teriam os
sinais sido mal interpretados?
— Piros. — murmurou, olhando adiante.
Caminharam até o sol ficar por sobre elas,
imponente na abóbada celestial, imperando
como há eras fazia, sem intervir nos afazeres
dos mortais e dos deuses. Percebendo que a
jovem não mais suportaria caminhar, tanto
pelo calor como também pelo cansaço, Mirha-anna
indicou a sombra de um abeto e, de sob
o manto, retirou um odre cheio de água crista-lina,
o qual ofereceu a Deora. A jovem
agradeceu com um sorriso e, depois de saciada,?retornou o recipiente a Mirhaanna. Porém,
uma pergunta ainda teimava em ecoar na men-te
da jovem:
— Mirhaanna... Sobre minha morte... Eu
não vou morrer, correto?
— Claro que vai, criança... — a aspereza da
voz de Mirhaanna assustou Deora. — Todos
vamos, um dia. Mas alguns morrem e renas-cem
sem que se deem conta.
— Não consigo compreender. Morte e re-nascimento?
Mirhaanna, então, assumiu uma postura de
quem olha para o vazio, recordando-se de algo.
Estaria Deora pronta?
— Conhece a verdadeira história de Vlyn,
criança?

Sei sobre a formação de Mitarna e Jol-lern...
Sei que a ilha ainda é pouco explorada e
escassamente povoada...?— Não, não... — Mirhaanna balançou a
cabeça. — Não é isso, criança. — mirou nos
olhos da jovem. — Precisa saber a verdadeira
história.
Deora assentiu, em silêncio. Aqueles olhos
demandavam obediência.
— A ilha de Vlyn é um altar. Porém, o que
existia de sagrado aqui era a morte sempre vi-va,
uma bênção e uma maldição sem par. Mas
deixemos que a história siga seu fluxo correto
e partamos do início de tudo...
Mirhaanna ergueu-se e Deora, sem com-preender,
levantou-se também. Retomavam a
marcha em direção ao sul.
— Não há como lhe contar tudo, criança.
O que tenho a dizer é descrito em dezenas de
tomos místicos, míticos e lendários, e é por
isso que minha história pode parecer truncada
ao resumir todos esses conhecimentos em
uma simples narrativa... No início dos tempos,?Luz e Treva dividiam o Todo e, da sua união,
nasceu o Eterno, o maior dentre todos os deu-ses.
Sozinho, pois Luz e Treva retornaram ao
Todo como sol e lua, o Eterno concebeu a
criação dos quatro primeiros deuses: Hiljam,
Berilla, Nivus e Dalya. Abençoando seus filhos,
respectivamente, com os dons da luz e sabe-doria,
magia e essência, amor e paz, treva e
cura, o Eterno voltou ao Todo, onde se trans-formou
nas estrelas. Mas os quatro primeiros
deuses também se uniram para gerar seus fi-lhos:
Nivus e Berilla deram forma a Andora, a
natureza,e Val ’ys,o artífice;Hiljam e Dalya
conceberam Lapher, senhor da justiça, e Gw-yanna,
senhora da vida e morte. Está
compreendendo?
Todas as imagens passavam pela mente de
Deora, como se estivesse apenas se recordan-do
de algo há muito reservado nos recônditos
de suas memórias. A jovem assentiu.?— A obra mais divina da criação dos deu-ses
se iniciou com um ato de autossacrifício de
Andora, a deusa da natureza, que fez de seu
seio esquerdo nosso mundo... Mas todos os
deuses tomaram parte na criação e, em verda-de,
somente quando o mundo estava quase
todo pronto é que a deusa viu o resultado de
seu ato. E foi da sua mais pura lágrima de ale-gria
que toda a vida nasceu. O exato lugar
onde a lágrima divina caiu é hoje o centro do
Grande Continente...
— É um pouco confuso...
Mirhaanna riu com a interrupção da jovem,
percebendo que, muito lentamente, Deora
compreenderia o verdadeiro significado de
tudo. Em seu íntimo, Mirhaanna sabia que es-tava
fazendo a coisa certa ao levar Deora para
Piros.
— Isso, criança, é um dos grandes misté-rios
que se oculta em Piros. Em suma, tudo é?criação dos deuses... E por isso, tudo, sem ex-ceção,
é divino.
Havia um brilho no olhar de Deora, mas
permaneceu em silêncio.
— Mas não deixemos que a história perca
seu rumo. Apesar de ter contribuído ativamen-te
para a formação do mundo, Gwyanna, a
deusa do ciclo eterno da vida e morte, estava
insatisfeita. Ela via, em todos os lugares, a vida
ser reverenciada, enquanto à morte era relega-da
a existência secundária. Em um lapso de
insanidade, Gwyanna concebeu a ilha de Vlyn.
— Insanidade? — interrompeu novamente
Deora.

Se me deixar terminar, criança, entende-
rá...Das mãos do artífice Val ’ys a ilha foi
formada, mas Gwyanna pessoalmente conce-deu
a essência mística do local, tornando a ilha
um altar para a morte... Em contraposição ao
Grande Continente, que era seu altar para a?vida. Em Vlyn, aqueles que morressem retor-nariam
uma vez mais.
Um arrepio percorreu a espinha de Deora
ao saber que estava em um lugar que, apesar
de ter sido concebido por uma deusa, era a-maldiçoado.
Mas a jovem nada disse e
continuou a ouvir a narrativa.
— Gwyanna atraiu diversas criaturas para
Vlyn e, utilizando-se do poder de sua essência
mística, ceifou suas vidas com um único ato.
Com as mortes maculando o solo de Vlyn, a
maldição da morte sempre viva foi alimentada
e as criaturas retornaram como mortos-vivos.
Em sua insana alegria, Gwyanna impeliu suas
criaturas adiante e fez com que atacassem o
Grande Continente.
Deora imaginou um exército de criaturas
fantasmagóricas e disformes atravessando os
mares, destruindo naus e assaltando cidades,
não podendo ser por nada atingidas. E tais?pensamentos nublaram sua mente por alguns
instantes, pois não se recordava de como havia
alcançado as praias de Mitarna em um peque-no
barco.
— Mas a pior dentre todas as criaturas e-ram
os Dragões de Ossos. Criadas a partir da
morte de dragões tão altos quanto torres, três
dessas criaturas trouxeram o verdadeiro caos e
a mais pura destruição ao Grande Continente.
Somente as cinzas restariam se não fosse a in-tervenção
do Fênix.
Mirhaanna ainda olhava para o vazio, seus
olhos brilhando a cada palavra dita.
— O grande pássaro de chamas, testemu-nha
da criação da obra divina, guardião da
essência flamejante... Era o pássaro de Berilla,
a deusa da magia, dado a ela por Nivus, seu
consorte, deus do amor e paz. O Fênix sabia
que o momento de deixar o mundo de Andora?havia chegado e que batalhar contra os três
Dragões de Ossos era seu ato final.
Em silêncio, Deora viu uma lágrima rolar
pela face de Mirhaanna. O que haveria de tão
importante naquela história?
— Em uma batalha sem par, o Fênix se sa-crificou,
explodindo em chamas, destruindo-os,
enquanto se exauria em suas próprias laba-redas.
— um sorriso, então, deu lugar à
lágrima de Mirhaanna. — E das chamas nas-ceu
um jovem Fênix, que guardaria o mundo
de Andora por muito tempo. No entanto, o
ato do pássaro flamejante não somente destru-iu
os Dragões de Ossos como também
purificou toda a ilha de Vlyn. Com a morte e a
vida, extinção e nascimento do Fênix, fim e
começo, a ilha de Vlyn não precisava mais ser
um altar para a morte sempre viva e a maldi-ção
deixou de existir.?— O ciclo da morte e vida voltou a ter for-ça
sem que a ilha precisasse ser seu
canalizador... — interveio Deora.
— É exatamente isso, criança. — sorriu
Mirhaanna. — Mas ainda há mais um ato que
deve ser narrado.
A jovem assentiu e pacientemente aguardou
enquanto a outra tomava mais um gole da cris-talina
água de seu odre.
— Tudo o que lhe disse até o momento
pertence à esfera das lendas. Apesar de acredi-tar
com toda a força de meu coração em cada
uma daquelas palavras, nada posso provar.
Mas o que agora vou lhe dizer realmente ocor-reu
e não há motivo para dúvidas: há exatos
oitenta e oito anos, Berilla, a deusa da magia,
morreu.
A jovem estremeceu ao ouvir isso, embora
em seu coração sentisse que as lágrimas um?dia derramadas pela morte da deusa já haviam
secado.

Berilla ousou desafiar os outros deuses,
vindo ao Grande Continente sem sua permis-são,
para atravessar o labirinto sob as
Montanhas Maradi junto de mortais. Ela foi
advertida de que, se desejasse continuar, os
deuses retirariam sua essência divina e ela seria
apenas mais uma mortal... Mas se desistisse de
sua empreitada, manteria os poderes que fazi-am
dela uma deusa.
— Berilla disse que continuaria... — mur-murou
Deora.
— Há mais características mortais em um
deus do que eles ousam especular, criança.
Mas, ao afrontar os deuses, teve de si retirada
a condição divina, partindo junto aos mortais
como uma igual. O labirinto, porém, apresen-tava-
se como um grande desafio até mesmo
para uma deusa e, por diversas vezes, pensa-?ram em retornar. Com Berilla sempre à frente,
foram emboscados. A deusa da magia foi atin-gida
com um ferimento mortal e sua dor fez
com que um impulso de sobrevivência viesse à
tona... Instintivamente ela drenou toda a es-sência
mística existente e, naquele momento, a
magia, como era conhecida até então, acabou.
Aquelas palavras atingiram Deora como um
fulminante raio. Naquele instante, sentiu uma
dor em seu coração, suficiente para que vis-lumbrasse
um bebê, ainda no colo, envolto em
panos de linho em tons de terra, chorando
muito, como se houvesse sido atingido por
algo infinitamente poderoso...
— A deusa da magia foi levada por seus
companheiros e, enfim, alcançaram o lendário
Castelo da Luz, local onde todas as máculas
mortais teriam fim. Mas — suspirou Mirhaan-na
— Berilla era uma deusa... Nada salvaria
sua vida.?Deora olhou para o ocaso, tentando com-preender
que forças teriam influenciado a
decisão de uma deusa para que deixasse para
trás o manto da divindade, tornando-se una
com os mortais, mas não chegou à resposta
alguma.

Existia magia... Ninguém tentou curar
seus ferimentos magicamente?
A mulher olhou para a jovem com um o-lhar
de ligeira desaprovação.
— Acredito que seus pensamentos ocupam
tanto de seu tempo, criança, que não permiti-ram
que ouvisse o que disse há pouco... Há
muito a aprender, mas não será uma mente
dispersa que compreenderá tudo o que há para
ser ensinado. Eu disse que Berilla drenou toda
a essência mística de Andora... Não havia co-mo
magia alguma ser realizada naquelas
circunstâncias... Não a magia que conheciam.?Murmurando um pedido de desculpas, De-ora
voltou a se concentrar. Havia tanto para
saber, mas tão pouco tempo...
— A indagação faz parte do crescimento,
criança, mas deve aprender a controlar o im-pulso
de chegar sozinha aos lugares onde
somente com a ajuda de alguém alcançará... —
ela balançou a cabeça. — Nada foi capaz de
salvar a vida de Berilla. Ela ainda tomou em
suas mãos o fio de sua vida por muito tempo,
mas houve um dia em que o fardo se tornou
pesado demais... E, como lhe disse, há oitenta
e oito anos a deusa da magia morreu...
A jovem novamente percebeu os olhos dela
se encherem de lágrimas, mas a mulher conte-ve
sua emoção, fazendo com que secassem
antes que Deora pudesse dizer algo.
— A morte de toda a magia — continuou
Mirhaanna. — foi um evento muito mais de-sastroso
do que qualquer ser, mortal ou divino,?poderia supor. O fim da magia, porém, não foi
o que mais nos atingiu... Foi...
A mulher ficou calada. Deora esperou por
alguns instantes, mas percebeu que nada mais
seria dito.
— O que houve, Mirhaanna? — a jovem
rompeu o silêncio. — Qual foi a pior conse-quência
do fim de toda a magia?
A mulher parou de andar por um momento
e olhou para Deora, com a face da mais pura
tristeza, coroada por um rio de lágrimas que
teimava em descer sem cessar.
— A morte de quase todos os seres místi-cos
e fantásticos de Andora.
Subitamente, imagens desconexas passaram
diante dos olhos de Deora, rodopiando e gi-rando
tão rapidamente que uma vertigem
repentina acometeu a jovem. Um pouco fora
de si, ela começou a balbuciar:?— Gritos... Sangue... Eles caíam por todos
os lados... Uns poucos emitiam gritos tão ter-ríveis
que podiam gelar os ossos... Mulheres
viam seus filhos morrerem em seus braços...
Crianças se agarravam aos corpos inertes de
seus pais... Lágrimas... Choro... Morte... Morte
ao meu redor...
Num átimo, Mirhaanna secou as lágrimas e
pôs as mãos por sobre os ombros de Deora,
sacudindo-a para que voltasse a si. Por algum
tempo disse o nome da jovem, em vão, até
que Deora, com a face em agonia, olhou para
Mirhaanna e fez uma simples pergunta:
— Por quê?
A mulher a abraçou como uma mãe abraça
a filha desamparada, esperando que a sereni-dade
voltasse a reinar. Após algum tempo, sob
os últimos raios do sol que se punha, Mirhaan-na
voltou a falar:?— Vejo que foi muito afetada por essa his-tória,
criança. É como se sentisse a dor dos
elfos de Amtal quando Berilla deixou este
mundo...

Elfos de Amtal?
Mirhaanna voltou a caminhar para o sul e
instigou Deora a fazer o mesmo, enquanto
respondia a pergunta da jovem, já podendo
observar o nascimento da primeira estrela no-turna:
— Está vendo aquela estrela amarelada, cri-ança?
Nós a chamamos de estrela de âmbar...
Surgiu quando Berilla morreu, como um sinal
de que sempre estaria a velar por nós, mesmo
junto ao Eterno... Mas não vou me esquivar de
lhe esclarecer sobre a tragédia de Amtal ou o
que houve com os elfos.
— O que são esses elfos?
— É estranho que não se recorde nem
mesmo dos elfos, criança... O povo élfico foi?um dos primeiros a compreender a existência
dos deuses e a ter consciência de si como cria-turas
que podiam pensar e moldar o mundo ao
seu redor. Sua longevidade os fazia viver por
séculos e não era raro que manifestassem
grande aptidão para a magia em sua mais pura
forma, mas isso foi na Era Dourada.
— Era Dourada?
— É como chamamos o tempo em que vi-viam
entre nós, humanos. Mas todos partiram
no Grande Êxodo.
— Como eram esses elfos? — Deora pare-cia
cada vez mais interessada.
— Eram mais esbeltos, embora um pouco
mais baixos, e alguns tinham uma compleição
robusta, todos ostentando orelhas levemente
pontudas. Porém, estamos nos desviando do
curso correto do tempo. Deixe-me falar sobre
Amtal. Era uma cidade onde os elfos e outros
povos fantásticos viviam em harmonia e seu?crescimento se refletia nas cidades vizinhas...
Até Berilla morrer e a essência mística ser dre-nada...
Em uma única noite, toda a população
de Amtal pereceu. Hoje, a cidade em ruínas é
um lugar maldito e somente poucos se atre-vem
a entrar pelos portões guardados por
mortos-vivos.
— Mas onde...?
— Longe daqui, criança. — interrompeu
Mirhaanna. — A Necrópole de Amtal fica no
Grande Continente. Não se preocupe com
isso.
Deora assentiu com um movimento de ca-beça,
um pouco aliviada.
— Os elfos, então, perceberam que a morte
da magia não havia atingido somente seu povo,
mas também todos os povos místicos e fantás-ticos.
Sabendo disso, o conselho de anciãos de
Ëradan, a primeira cidade élfica, foi convoca-do
e, após discutir por sete luas, finalmente?chegou a um consenso: era necessário que
deixassem o Grande Continente e que um no-vo
local fosse encontrado para que pudessem
viver como antes. A palavra dos anciãos cor-reu
e alcançou a todos, retornando com a
anuência dos grandes líderes de cada povo.
Foi assim que, há sete anos, o Êxodo dos Fi-lhos
de Andora ocorreu.
Deora escutava como se aquilo houvesse
sido parte de sua vida. No entanto, nada pare-cia
se encaixar corretamente, como se diversos
elos da corrente estivessem perdidos nas en-cruzilhadas
do tempo. Contudo, a jovem não
ousava mais especular sem que a história toda
lhe fosse contada, para que nenhum outro elo
se perdesse.
— Há sete anos, — continuou Mirhaanna.
— galeões élficos partiram de Porto Serênia,
em Siarit, no Grande Continente, rumo ao i-nexplorado
e desconhecido sul, onde?buscaram terras novas para se viver. Não so-mente
elfos embarcaram como também
muitos outros seres, deixando para trás apenas
os humanos ou aqueles que poderiam prejudi-car
a jornada.
— Prejudicar?
— Sim. Criaturas malignas foram abando-nadas
à própria sorte para que sobrevivessem
num mundo sem magia. E são, hoje, a grande
mácula do Grande Continente, inimigos mor-tais
dos humanos.
— Mas as criaturas foram deixadas para
morrer!

Isso não deveria fazer com que se vol-tassem
contra nós, como se nos culpassem das
mortes de seus povos, quando a verdadeira
causa era a morte da magia. Ainda assim, não
me interrompa, pois falta muito pouco para
concluir essa história.?— Tudo bem. — disse a jovem, olhos ago-ra
na lua cheia que iluminava a face de Mirha-anna.
— A magia morreu... Os galeões partiram...
A Era Dourada teve fim... Mas os humanos
não desistiram facilmente e a prova disso foi a
busca por uma nova magia, iniciada por aque-les
que conheciam o paradeiro de alguns itens
que continham a essência dos deuses. Um des-ses
grupos de feiticeiros veio para Vlyn e
encontrou o que buscava.
A mulher seguiu o olhar de Deora, sorrindo
ao ver as centenas de estrelas que já povoavam
os céus naquele instante, a marca do Eterno,
testemunha silenciosa de tudo o que ocorria.
A jornada logo teria fim, sabia, pois o caminho
que percorriam já era, há muito, seu conhecido.
— Com os saberes adquiridos, os feiticei-ros
passaram a erguer um lugar para que
pudessem desenvolver suas habilidades sem?que seus estudos fossem perturbados pelos
mortais que não dispunham do dom místico
verdadeiro. Não tardou até que uma verdadei-ra
confraria fosse formada, seus membros
passando a serem reconhecidos por mantos de
cor rubra.
Ao som daquelas palavras, o traje de Mirha-anna
pareceu se tornar como a chama da
fogueira que cresce quando alimentada. Mas
não foi apenas isso, pois o próprio manto co-meçou
a emitir uma suave luz bruxuleante que
iluminou a face da mulher de forma sombria.
— Eles formaram a Ordem Vermelha, a
maior confraria de feiticeiros que já existiu. O
local que construíram foi uma torre onde to-dos
os seus segredos foram guardados. E essa
torre se chama...
Ao virar a última curva da trilha, Deora a-vistou
uma construção majestosa, formada de
tijolos vermelhos como rubis, quase brilhando?entre duas piras que, como sentinelas atentas a
tudo, guardavam o caminho principal. A cons-trução
escarlate possuía quatro andares, mas se
impunha como a maior obra do mundo, gra-ças
a sua majestade silenciosa e beleza
incomparável. Era, supunha a jovem, a torre
de que Mirhaanna havia falado, e sem dúvida
seu destino final. Com uma admiração contida
e uma voz solene, Deora completou a última
frase do discurso de Mirhaanna:
— ...Piros.
A mulher sorriu, satisfeita. Enfim, havia
trazido a jovem para lá e a primeira parte da
tarefa estava cumprida. Após se aproximarem
das duas piras acesas, Mirhaanna deu três pas-sos
em direção à torre, mantendo-se tão
distante das chamas quanto Deora. O vento
começou a soprar mais forte.?— É chegado o momento de tua morte. —
Mirhaanna passou a um tom mais formal, em-bora
não aparentasse demonstrar emoção.
Deora sobressaltou-se, mas nada disse. No
entanto, seus pensamentos começaram a bus-car
algo indefinido, como se fosse sua única
oportunidade de sobrevivência.
— Estás preparada para morrer?
Olhando ao seu redor, Deora percebeu que
muitas outras figuras se aproximavam, ainda
envoltas pela penumbra, e soube, naquele ins-tante,
que não haveria fuga. Volvendo seus
olhos para as duas piras e para Mirhaanna, que
aguardava sua resposta, Deora se lembrou de
seu sonho e ousou trilhar um caminho dife-rente:
— Estou em uma encruzilhada, Mirhaanna.
Norte é o meu ponto, sul o seu... As chamas
guardam o leste e o oeste. O que me aguarda??Um murmúrio de espanto foi ouvido por
um instante, emitido por aqueles que cerca-vam
a jovem. Porém, assim como a voz de
Deora havia dado origem ao murmúrio, a de
Mirhaanna o extinguiu.
— O que há nesta encruzilhada?
Os olhos de Deora viam a si mesma, duas
piras e Mirhaanna. Mas os olhos de sua alma,
aqueles que vivenciaram o sonho, enxergavam
apenas os quatro objetos que antes se encon-travam
aos pés da figura onírica misteriosa.
— Uma espada, um cálice, uma moeda de
prata, um manto.
Um novo murmúrio se fez ouvir, mas se
encerrou antes que Mirhaanna pudesse conti-nuar
a questionar Deora:
— O que buscas?
— Conhecimento.
— E o que farás quando alcançá-lo??— Dele farei uso, para que outros possam
ser, por ele, iluminados.
E, pela última vez, as vozes se levantaram
como se sussurrassem entre si. Contudo, todo
o som, inclusive o farfalhar das folhas e o ca-minhar
do vento, teve seu fim quando Mirha-anna
se aproximou de Deora com três passos
largos.

Antes de prosseguirmos, é preciso que
prometas jamais revelar os segredos que exis-tem
em Piros. Assim o fazes?
— Sim, Mirhaanna.
— Que assim seja, então. A ti cabe escolher
como deverás morrer. Qual o teu desejo?
Deora mordeu o lábio inferior, olhando no
fundo dos olhos de Mirhaanna como se supli-casse
surdamente por ajuda. Naquele instante,
recordou-se de todos os ensinamentos que lhe
haviam sido passados durante a jornada que
juntas trilharam. De repente, havia uma saída.?— Desejo morrer como o Fênix.
— Tua morte será um sacrifício em prol de
quem?
A jovem observou as duas piras que inces-santemente
crepitavam sob a luz do luar e
volveu os olhos para a magnífica torre. A resposta estava diante dela:
— Meu sacrifício é por Piros.
Mirhaanna pareceu sorrir por um instante, mas Deora não sabia se era de aprovação ou ironia. A mulher, então, ergueu a voz mais uma vez:
— Tuas sete respostas foram satisfatórias...Amarrem-na!?Quer descobrir o destino de Deora? Quer saber mais sobre o caminho iniciático?
Há mais mistérios a serem desvendados do que tempo para conhecê-los todos.


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